Quarta-feira, 1 Outubro, 2025
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O TRABALHO INFANTIL: Vai estudar menino

Por Jornal Notícias
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GINOCA MAFUTINE

TEM dias que eu paro e penso: será que ainda existe infância em promoção? Daquelas com bola de trapo, riso fácil? Ou será que agora infância é artigo de luxo, acessível só para quem tem Wi-Fi, lancheira térmica e pais que assistem à palestra sobre parentalidade positiva?

Porque, honestamente, vejo umas infâncias por aí que mais parecem jornada de trabalho em mina de carvão, só que sem capacete, sem salário e sem intervalo para lanche.

Ali no cruzamento, entre buzinas impacientes e motores barulhentos, um menino de uns 11 anos carrega amendoim como quem carrega pedras. Sol a pino, suor escorrendo, e lá vai ele, de carro em carro, com a inocência pendurada nos ombros, espremida entre os saquinhos de plástico.

“Vai para casa, menino!”, grita uma senhora impaciente, enquanto fecha o vidro como quem tapa os olhos do menino, com os olhos ainda mais abertos que os nossos, responde:

“Não posso, vovó. Mamã disse para eu vir vender para ter comida”.

E o pai? Ah, esse é uma lenda, figura mítica, desaparecido no capítulo 1 da vida dele,  talvez volte no capítulo 30 ou nunca.

A senhora fica chocada: “Onze anos e não sabe ler?” E as outras vendedoras, com o diploma da 12.ª classe dobrado no avental, disparam a lição de moral:

“Deixa o menino, vovó! Escola para quê? Nós estudamos, mas estamos aqui também, que vá vender, que ajude a mãe, pois ainda pode ser patrão no futuro”.

Ah, a ironia. Em um país onde o diploma não cabe no prato, a lógica é simple, melhor um troco na mão do que um sonho no papel, criança que trabalha é chamada de “guerreira” mas  guerreira de quê Janete? Da fome?

E por falar em fome, ali do outro lado da rua uma jovem mãe carrega seu bebé no colo, não carrega, arrasta. O bebé parece mais leve do que o desespero dela e vai de carro em carro, com um pano amarrotado, um olhar cansado, e uma frase que rasga mais que convence:

“Ajude com o que puder, só quero leite para o meu filho”.

Alguns abrem a janela e ajudam, mas outros dizem que ela deveria “parar de usar o filho como desculpa”,  como se miséria fosse estratégia de marketing. “Vai trabalhar, senhora”, dizem.

No dia seguinte? Lá está ela, no mesmo lugar, mudou a fralda, mudou o discurso, mas a realidade é a mesma: pedir, carregar e resistir.

E assim segue a infância de muitos sem recreio, sem lápis de cor e sem direitos. Enquanto isso, seguimos gritando “vai estudar, menino!” como se escola fosse questão de vontade, como se o problema fosse a criança, e não o sistema que permitiu que ela virasse mão-de-obra antes mesmo de virar gente. O menino do amendoim não precisa de conselho, precisa de protecção.

E nós? Ah, nós precisamos de vergonha na cara uma vez a outra.

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