Retalhos e Farrapos: O infeliz John Ball Wilson (Concl.) - Hélio Nguane(Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.)
Dia 3. Ontem quase queimei a casa
O FUMO denso passeia, nubla, a atmosfera é nicotina. Acabo o primeiro maço, remo pensamentos, solto a fumaça agressiva, que com raiva se veste de dragão e ameaça a minha lucidez.
No décimo nono cigarro, tomo as últimas gotas da garrafa de vodka, cai sem forças para enfrentar quem sou. Adormeço, sonho com outra realidade, vejo-me barbeado, com vestes de pai de família, uma mulher linda a segurar o meu braço esquerdo e um meninote com as minhas feições a segurar o dedo polegar do meu braço direito. Entramos na igreja, rezamos e no final da missa acendo uma vela.
Desperto e vejo o fumo da vela, apago o cigarro, levo as mantas para as águas da banheira. A casa cheira a queimado. Aquele sonho destruiu-me.
Dia 4. Reavistei Jornova e seu filho
Ela ainda tem as mesmas ancas, os seios estavam firmes, talvez seja o efeito especial do sutiã. O menino pareceu-me familiar, tinha um olhar ingénuo. Não tive coragem de encará-la, é triste exibir o meu físico, as minhas roupas largas, as minhas carências justas, os panos rotos da minha essência.
Odeio o olhar que as pessoas lançam sobre mim. Fixei o meu olhar para os sapatos, para não ver a face angelical a esboçar repúdio e outros sentimentos similares ao ver no que me tornei.
- Conversamos amanhã, a mesma hora.
- Não sei se quero conversar.
- John, venha ao jardim, venha apenas.
- Não sei se quero conversar.
- Estarei àmesma hora. Sentarei no nosso banco.
- Este jardim é público. E não sou proprietário de banco algum.
- Filho, diz adeus a este senhor.
- Quem ele é, mãe?
- Um amigo de infância.
- Não é adorável, dizer coisas do género a este pequeno. Vou seguir meu caminho, espero que não nos cruzemos – disse, num tom irónico, na esperança de espantá-los.
- Eu enviei várias cartas para o Watson, seu melhor amigo. Na esperança que ele lhe enviasse.
- Watson morreu. E na casa dele só reside a esposa, que teve trombose há seis anos.
Eles saíram do jardim, deixaram-me sentado no banco, a dialogar com a fumaça do meu cigarro. Quando eles saíram, fui directo àcasa de Watson, vi a esposa dele, pedi ao filho deles para me trazer a caixa de lembranças do casal. E nela, encontrei quatro cartas redigidas por Jorvana. Pensei em ler ali, mas levei-as para casa, comprei duas garrafas de vodka e dois maços de cigarro para auxiliar a leitura.
Dia 5. Li as cartas e não cortei meus pulsos por falta de coragem
Depois de ler, levantei, abri a porta e tirei o papel afixado. Peguei num papel e escrevi com um marcador, “Por aqui passou o infeliz John Ball Wilson”. Sentei na banheira, com a lâmina na mão, remoí tudo, mergulhei em inúmeros “e se” e no fim a conclusão: não se muda o passado: aquela criança, aquelas ancas, aquela família e eu somos entidades diferentes. Pensei em responder as cartas, mas de nada serve. Só me sobra usar a lâmina, mas como devem saber, só cobarde demais para isso. Mas um dia, mas um dia.