Sigarowane: O frio da Sexta e o enterro do Sábado

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Djenguenyenye Ndlovu

AINDA sob os efeitos de uma ressaca que o vinha massacrando há quatro dias, dirigia moderadamente, como quem diz, para mais ou menos perto do local do enterro, tendo de percorrer duzentos noventa e seis quilómetros, mais ou menos. Dirigia, dirigia e a luz ia dando lugar ao escuro e ao mesmo tempo dos céus caía a chuva com cada vez mais intensidade. As escovas do limpa-para-brisas eram novas, mas incapazes de muita eficiência em razão da quantidade de água largada pelas nuvens. O interior do carro estava uma câmara de choque, mas não conseguiu libertar uma mão do volante para subir a temperatura. Vestia uma camisola interior branca (que as há, também, de outras cores), uma camisola polo de mangas compridas e um blusão preto. De cabedal. Mas tirritava de frio. Ia aguentar, disse para com os seus botões já na subida de Magul. E a chuva continuava a cair o que não permitia marcha rápida. E para piorar, os intestinos começam a incomodar. Há carga que já não a suportam. Precisam largá-la. Mas têm de aguentar.

O rádio do carro faz um barulho, mas não percebe nada. Percebe é do chocalhar dos dentes, do tremor do corpo e do enorme desejo de chegar ao porto intermédio. Deixa a vila da Macia e dirige para o Sul. Nyangono é o destino nessa sexta-feira “criminosa”. Aqui os cuidados têm de ser redobrados: estrada estreita e a circulação de veículos de grande porte mais a chuva que teimava a fazer companhia. Companhia de todo indesejável, mas também inevitável. Já na vila de Nyangono e se sentindo ligeiramente à-vontade, passa pela zona do mercado e tudo fantasma. São já seis da tarde. Nem sequer pode comprar recarga para o telemóvel.

Um restaurante tem as luzes interiores acesas e vultos se movimentando. Não pára. Continua com a marcha até imobilizar-se no quintal. Abre a porta do carro e salta para fora deste. O frio envolve-o da ponta do mindinho, lá dos pés, até a do cabelo, apesar do boné bem enfiado na cabeça. Corre para a varanda das traseiras, por onde normalmente adentra a casa, ao mesmo tempo que grita pelo guarda. Este tarda, para o nível de aflição, e quando chega, não tem solução. A chave está com a filha e esta saiu com o marido para o desfrute, mas que já tinha telefonado e um taxista estava trazendo as chaves. Bem sofrida foi a espera até que as luzes de um carro alumiaram a entrada. Respirou de alívio e abandonou o carro, onde foi fazer a espera.

No balcão da cozinha, terinas de carne de frango, saladas e o que a aflição não deixou ver, perceber. O guarda dança para encontrar a chave do quarto de um molho de muitas e…finalmente! Uf!.., mas tinha de resolver o problema de frio, que era sério. Olhou para o aquecedor que lá vive há anos, mas nunca soube onde guardam o adaptador da tomada. E a filha está com o marido e não pode ser útil naquele momento. No fundo da cama, ao lado está colocada uma cadeira cinzenta, bem cómoda. Sobre ela, um par de pijamas não sabe há quanto tempo ali deixado. Desfez-se das roupas e vestiu-se de pijamas. E sem se lembrar da joalheira enfiou-se nas mantas de barriga com a cara afundada nas fronhas. Expirou por duas vezes. Desejou sono imediato, mas este não cedeu. Tremia o corpo todo de frio, mas, mais uma vez, não se socorreu de outras mantas no guarda-roupas ao lado da cama.

Passado um tempo, que não sabe quanto, sentiu um suave bater na porta e logo a maçaneta a girar. Era a filha. Não se mexeu. Não queria prestar-se a respostas, a perguntas. Ela disse, para ela mesma “yo!.. papá está a dormir”. Voltou a fechar a porta suavemente. Ele permaneceu deitado de bunda para cima e por um tempo o sono cuidou de o aliviar do sofrimento, do frio.

Passava das nove da noite quando bateram de novo na porta. E desta vez foi para acordar mesmo. E teve que ser. O jantar estava pronto. Eles estavam á espera. Mobilizou-se e lá foi. Comeu a carne de frango com salada de alface. Notaram que estava a tremer. É de frio.

Por cima do armário estava uma garrafa de Tequila. Puxou-a para a mesa e a filha preparou limão, sal e copo. Foram dois shots e o frio morreu. Voltou ás mantas e pouco antes das dez da manhã estava na estrada sem que tivesse tomado um café sequer. Ia em cumprimento de um dever cristão: enterrar os mortos.

Era o enterro do velho Vicente Sitoe. Era da Assembleia de Deus, pelos vistos um homem de Evangelho bem conhecido no sul de Gaza. Estivera com ele algumas  vezes e em todas elas, o velho só destilava sabedoria .

E naquele sábado ia ser enterrado em Loane.

E a terra guarda o seu corpo enquanto este não se afoga na água da chuva .