Quarta-feira, 1 Maio, 2024
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APONTAMENTO: “Da Consulta à Gramática” Obra com serventia e prestimosa

Por Jornal Notícias
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Leonel Magaia*

CONFESSO que quando recebi o convite para apresentar o livro entrei em pânico.

Em pânico sobretudo pela envergadura e classe, classe quer no sentido literal quanto no verdadeiro sentido, da autora, a Dra. Delfina Mugabe.

Em pânico também e obviamente pela responsabilidade acrescida para falar de uma obra ímpar, de uma autora ímpar, para um público ímpar, ainda que sejam todos meus pares.

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Recordei-me então de algumas interpelações, quer nos corredores da redacção, quer no seu gabinete de trabalho e muitas vezes também informalmente, onde discutíamos algumas formulações menos conseguidas, quer pelos colegas jornalistas, quer pelos revisores linguísticos, na altura eu responsável pelo sector que trata pela limpeza de formulações agramaticais nas mais variadas concepções.

As discussões nem sempre foram consensuais, mas o epílogo, esse, tinha um condão e carácter formativo e informativo.

É nessa senda que a Dra. Delfina embarca para uma viagem no Jornal Notícias com curtas paragens para apresentar e explicar uma série de “anomalias discursivas” que povoam o universo da fala e da escrita em língua portuguesa no nosso quotidiano.

Pela firmeza, dedicação, persistência e mais do que tudo, paixão, estava implícita a gestação de um instrumento esclarecedor de dúvidas recorrentes, este que hoje temos em mão, a obra “Da Consulta à Gramática”.

Considero “esclarecedor” justamente porque afinal já existem instrumentos normativos: as gramáticas normativas, prescritivas, históricas, que impõem regras explícitas para o uso correcto da língua escrita e falada.

Mas, então, qual é a relevância desta obra se já existem instrumentos normativos? E se existem esses instrumentos normativos por que é que persistem imprecisões discursivas e andamos todos a “correr atrás do prejuízo”, não sabemos se nos “sentamos à mesa ou na mesa” ou se as “pessoas são evacuadas ou retiradas” da praia onde estavam a “frescar”? Por que é que continuamos a “pendurar a roupa no sol e não ao sol?”

Ora, aí entramos para o sentido global do livro, o que ele versa? Para quem se destina este prosódico esquema de orientação normativa?

Mais do que levar os presentes a uma viagem cansativa dos processos hermenêuticos de formações discursivas ou de estrutura textual, da frase e do enunciado, permitam-me dizer, com as devidas reservas de razão, que ressalta no espírito da autora a ideia de que os seus informantes apresentam “erros”, não só por incompetência linguística, mas também porque podem estar a ser instigados por pretensos hábitos comunicativos, reproduzindo moçambicanismos derivados do intenso contacto da língua portuguesa com as línguas do grupo Bantu, causando por sua vez interferências linguísticas que colidem com estruturas normativas.

Ou seja, os contextos culturais e os ambientes são pretensamente também culpados da bantunização da língua portuguesa, assimetria que nos leva a reproduzir mecanicamente a ideia de que a “minha tia nasceu um rapaz ontem”.

Pois então, nas entrelinhas a Dra. Delfina Mugabe remete-nos para o cenário do desconhecimento normativo é verdade, mas também alerta para aceitação tácita dos hábitos comunicativos, dos empréstimos linguísticos à língua materna, das variedades linguísticas, da aculturação, induzindo-nos para os valores da ciência sociolinguística, mas no fim, com a elegância comunicativa que a caracteriza, por inferência a Dra. Delfina adverte-nos que independentemente de todas as sensibilidades das variações e realizações de moçambicanismos na fala e escrita, dos hábitos fossilizados, estes não devem receber carta de alforria pelo seu carácter comunicativo, pois existem instrumentos normativos da língua portuguesa e se não os acatamos estamos simplesmente em contramão ou contravenção.

Nesta obra a autora não consegue livrar-se de duas vertentes: a de docente e de jornalista.

Ela abre um parênteses no capítulo “As minhas anotações sobre o português que falamos em Moçambique” e faz um breve “refreshment” sobre conceitos basilares como frase, oração, período e artigo e recorre a eventos de escrita jornalística, buscando, quer num como noutro contexto, proteger-nos contra as imprecisões gramaticais, a exemplo de adjectivações inadequadas, ambiguidades discursivas, vícios de linguagem, infelizmente alguns casos usados no nosso dia-a-dia e, por isso, fossilizados no discurso, quer oral quanto escrito.

Esta obra, que se lê de um trago animado pela sua simplicidade comunicativa, ensina-nos isso mesmo: a diferença de um “texto de um não texto”, as dissociações semânticas, mas também as idiossincrancias morfológicas e sintácticas. 

É uma obra elástica, na medida que é acessível para todos os públicos.

A Sociedade do Notícias, que cavalga majestosamente rumo ao centenário, pode muito bem gabar-se de ter nos seus quadros quem tivesse a messiânica ousadia de nos alertar para os usos incorrectos de termos, formações e formulações linguísticas.

A par do Livro de Estilo, também concebido e reproduzido por gente da casa, a Sociedade do Notícias e o país passam a ter mais dois poderosos instrumentos normativos, que permitirão à casa uma refrescante soberania linguística.

“Da Consulta à Gramática” é pois uma convenção que deve ser consultada, percebida e obedecida.

Uma obra com serventia e prestimosa.

*Linguista, Msc

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